domingo, 15 de novembro de 2009

"Ossos do ofício" - Castor Cartelle


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Paleontólogo Castor Cartelle fala sobre os 150 anos da Teoria da Evolução e afirma que a polêmica de que os estudos de Darwin são a negação de Deus é pura falta de conhecimento. "Ciência e religião não se opõem" .

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Texto: Daniele Hostalácio
Fotos: Pedro Vilela
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Este é um ano de comemorações para a Teoria da Evolução. Em fevereiro, celebrou-se o bicentenário do nascimento de Charles Darwin e em novembro registram-se os 150 anos da publicação de A Origem das Espécies, a obra desse naturalista que marcou para sempre a história da ciência e influenciou o modo como compreendemos a nossa própria humanidade. Para falar sobre esses importantes marcos, conversamos com Castor Cartelle, renomado paleontologista de origem espanhola, naturalizado brasileiro, que é curador da coleção de Paleontologia do Museu de História Natural da PUC Minas, professor aposentado da UFMG e presidente da Fundação Biodiversitas. “Na natureza, tudo está conectado, inclusive o homem”, destaca.
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Qual a força, hoje, do pensamento de Darwin, 150 anos depois do surgimento da Teoria da Evolução?
O livro A Origem das Espécies foi publicado em 1859. Foi aí que surgiu a Teoria da Evolução e foi uma revolução, pois parecia que ela queria negar Deus. A teoria foi mergulhando num esquecimento e só depois da última grande guerra ela foi retomada, com uma denominação nova: teoria sintética da evolução. Pensava-se que a genética explicava tudo, mas ela pode ser considerada como um processo dentro da Teoria da Evolução. Hoje, do ponto de vista técnico, científico, para mim a Teoria da Evolução não existe, porque ela é um fato biológico. Não há que se falar em teoria, pois a evolução é a evidência, é o óbvio. Há 200 anos, por exemplo, havia teorias de tudo quanto era jeito para explicar a reprodução. Hoje ninguém fala na teoria da reprodução humana: ela é um fato. Para mim, a teoria da evolução hoje está nesse patamar. Mas, provavelmente, metade da humanidade não acredita nisso, mas na criação.
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O que pensa essa metade da humanidade?
A questão da evolução virou, hoje em dia, quase um problema de xiismo religioso. Muitos ainda pensam que é como se Deus fosse substituído pela natureza. Como se a Bíblia estivesse em oposição ao livro do Darwin. Muita gente olha por esse prisma – mais da metade da humanidade –, mas penso que esse é um problema de cultura. A evolução não é uma questão religiosa; no máximo é um problema de ignorância ou conhecimento. Mas, na comunidade científica, ela é encarada, hoje, como o óbvio.
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Essa dicotomia entre Teoria da Evolução e religião ainda faz sentido? Quem crê na teoria de Darwin não pode crer em Deus?
Absolutamente não existe essa dicotomia. Ciência e religião nunca se opõem. Quem tem medo de que a ciência se oponha a Deus, é sinal de que tem pouca fé. Se a pessoa acredita em Deus, a ciência é uma consequência do que Deus fez. É impossível, para quem acredita, que a ciência possa derrubar ou demonstrar Deus. Deus é uma descoberta pessoal. São coisas diferentes. Algo assim como o afeto e o carinho materno: a explicação ultrapassa o biológico.
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Que descobertas mais importantes, desde 1859, vieram reforçar a teoria de Darwin? Em que medida, por exemplo, a descoberta de que a Terra tem bilhões de anos de idade veio ajudar a Teoria da Evolução?
Muitas descobertas foram reforçando a teoria. Nenhuma a desautorizou. Darwin escreveu que, para a teoria dele ser verdadeira, era preciso muito tempo – tempo necessário para a evolução acontecer. Naquela época, um físico inglês, que era lorde, calculou que a Terra teria, no máximo, uns 40 milhões de anos. O lorde Kelvin era um inglês, muito culto, físico, só que, hoje em dia, uma criança da sétima série já sabe mais do que ele a esse respeito. Ao descobrirmos que a Terra tem bilhões de anos, a Teoria da Evolução foi reforçada. Além disso, todo o estudo biogeográfico feito até hoje, bem como todos os estudos genéticos, reforçam o pensamento de Darwin. O sequenciamento do genoma humano, por exemplo, que revelou uma similaridade entre os nossos genomas e os do chimpanzé, reforçando a tese de que descendemos do mesmo ser.Sim. Nada, depois de Darwin, conseguiu contrariar a teoria. Inclusive a problemática ambiental de hoje reflete consequências evolutivas.
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Durante a viagem a bordo do navio britânico HMS Beagle, além do fascínio que as ilhas Galápagos exerceram nele, parece que o achado de jazidas de fósseis, na Argentina, teriam sido muito importantes também para inspirar nele a ideia da Teoria da Evolução e da seleção natural. A paleontologia estaria, ao lado do naturalismo, na origem da Teoria da Evolução? Além de naturalista, ele foi também um paleontólogo?
Darwin não foi paleontólogo. O pai dele queria que ele estudasse Teologia, mas esse não era o mundo dele: entrou para o mundo dos insetos. O que ele não conhecia, como por exemplo a paleontologia, contava com a colaboração de outros, como Richard Owen, diretor do Museu de História Natural de Londres. Darwin, em seus estudos e viagens, começou a observar, que à medida que ia descendo para o sul, afastando-se dos trópicos, espécies eram parecidas, mas se diferenciavam. Era como se ocorresse uma adaptação a circunstâncias novas. Nas ilhas Galápagos, observou algo semelhante: alguns animais adaptavam-se de maneira diferente nas diversas ilhas. Diante dos seus olhos, lá estava uma aula de evolução dada pela natureza! Ele fez descobertas paleontológicas na Argentina. Especialmente ao descobrir tatus fósseis percebeu que eram diferentes dos atuais. O que ele via nas suas observações da fauna atual repetia-se no passado com as peças fósseis!
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De acordo com Darwin, o mundo biológico que hoje conhecemos é o resultado de milhares de milhões de anos de evolução. Mas li um evolucionista dizer que hoje é possível se observar a evolução se desenrolando em tempo real. A evolução não é tão lenta, como Darwin imaginava?
É possível se observar a evolução, hoje, por meio de análises genéticas. É que há genes que até indicam o tempo necessário para que eles se espalhem. A genética moderna, o estudo das populações, a biogeografia, por exemplo, sem dúvida têm sido muito importantes e são provas irrefutáveis da evolução.
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De que maneira a paleontologia tem contribuído, na atualidade, para corroborar a teoria de Darwin? É dito que ainda temos grandes lacunas a serem preenchidas, que há “elos perdidos” a serem encontrados...
Não é bem assim. Falam isso, mas a verdade é que a todo momento encontramos fósseis intermediários, por isso não há que se falar em elos perdidos. O que temos são degraus de uma escada. De fato, não temos toda a escada, mas sabemos que ela existe. Às vezes, diante de novas descobertas, mudamos os degraus de lugar, a escada de lugar, vamos adequando. Mas, para quem trabalha com paleontologia, essas lacunas não são o mais importante, porque a evolução é um processo. Um exemplo: eu descobri uma espécie maravilhosa, a Xenorhinotherium bahiense. Provavelmente foi a última espécie, pois se extinguiu, de um grupo que existiu há, pelo menos, 65 milhões de anos. Ao estudar o animal, analisei dentes de 65 milhões de anos, depois dentes de outro animal, de 50 milhões de anos; e outros de 30 milhões, 20 milhões, 10 milhões, 5 milhões e 1 milhão de anos. Todos esses animais eram do mesmo grupo do Xenorhinotherium.Os dentes ficaram como uma herança, uma informação. Comparando-se os primeiros animais com os últimos, ninguém diria que eram do mesmo grupo. Mas eram, e os dentes mostravam claramente modificações e heranças que continuavam no tempo. Esses dentes eram como um rio, que segue modificando. Ao longo do tempo, observa-se que a partir de um tipo de peixe, originaram-se os anfíbios; destes, os répteis; dos répteis, originaram-se as aves e os mamíferos. Nessas transições, achamos vários animais, intermediários. Estão no meio do caminho, preenchendo essas lacunas, provando a evolução.
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E o que os registros fósseis têm nos revelado sobre o processo evolutivo do homem na Terra?
Com o homem ocorreu o mesmo: submetido à evolução. Mas o homem é diferente. Para quem acredita em Deus ele é algo a mais. Mas foi fruto da evolução orgânica. Intelecto, alma... Está na pintura de Michelangelo na Capela Sixtina: o dedo de Deus.
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O cientista britânico Steve Jones afirma que a evolução acabou: o ser humano não sofrerá mudanças drásticas, porque viramos um grande continente genético, muito semelhante, e graças ao nosso estilo de vida. O que pensa disso?
Nós fazemos essas análises com os processos que temos hoje. Entraram novos elementos. Um deles é, de fato, a ausência de isolamento. Há 50 mil anos, não podíamos imaginar os índios e os africanos se encontrando. Além disso, não era esperada uma quantidade tão grande de seres humanos –quase sete bilhões. Temos também o fato de que o homem, hoje, é a única espécie capaz de influenciar o meio ambiente – quando ele era primitivo, ele não fazia isso. Não estávamos preparados, também, para viver cem anos, como acontece hoje. Todas essas circunstâncias são novas. O que pode advir de todas essas mudanças? As consequências podem ser duas: o início do nosso fim ou uma evolução que desconhecemos. Nada está programado.
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A ideia de que estamos sempre a caminho da evolução não se choca, de certa forma, com a descoberta de que há genes modificados, mutações que, ao contrário, não visam à evolução, mas à destruição do indivíduo, como genes para o desenvolvimento de doenças?
Não, essas mutações fazem parte do processo evolutivo, estão previstas para acontecer. Mas acontece que o homem está indo contra a evolução. A medicina atua contra a lei natural. Quantas parturientes morreriam se não houvesse os progressos médicos atuais? No meu último ano de colegial lembro-me de que um terço dos meus colegas eram órfãos de mãe devido a partos mal-sucedidos. Eu deveria estar morto, mas uma cirurgia de apendicite me salvou. Ou seja, o homem cada vez mais atua, com a medicina, para romper o processo evolutivo natural. Esse também é um elemento novo, dentre outros.
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Há algum grande equívoco na teoria de Darwin, algo que tenha sido colocado por terra ao longo do desenvolvimento da ciência, de 1859 para cá?
Há equívocos, sim. Vou dar o exemplo de um deles: Darwin desconhecia completamente a reprodução. Ele pensava que o homem vinha de um homúnculo, que era o espermatozoide. Ele pensava que o elemento feminino era apenas uma espécie de cesto que guardava o embrião, não contribuindo para a geração de outro ser humano. Mas o importante a dizer é que, quando Darwin apareceu com sua teoria, ele o fez em um momento bastante propício. No momento em que ele teve a genialidade de criar a Teoria da Evolução, ela já estava em via de surgir. A comunidade científica da época estava caminhando para isso. Tanto que o que apressou a publicação da obra dele foi o fato de um jovem, Wallace, que tinha viajado pela Indonésia, ter enviado para Darwin uma carta que era um resumo da teoria evolucionista, na qual esse jovem chegava às mesmas conclusões que Darwin. Então, ele se apressou a divulgar suas ideias.
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Certa vez o senhor disse que o estudo da evolução humana é comparável a uma fotografia em processo contínuo de revelação. Cada descoberta acentua a cor da imagem. Já estamos perto de ver toda a foto?
Essa é uma bela imagem. O primeiro fóssil de macaco foi encontrado em Matozinhos, em Minas Gerais, por Peter Lund, em 1838. Ele foi, também, dos primeiros a encontrar crânios humanos. Ao longo do tempo, cada vez que se investe mais em pesquisa, reconhece-se que as origens do ser humano estariam na África. Infelizmente, em regiões que vivem hoje num grande conflito, como a Etiópia, o Zimbabwe. Por isso as pesquisas, nessas regiões, estão paradas neste momento. Mas, o que a paleontologia já conseguiu encontrar nos dá, pelo menos, uma figura; antes, na fotografia, víamos apenas uma mancha.
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O que as imagens nos dizem, em síntese, é que na natureza tudo está de algum modo conectado a todo o resto?
Sim, tudo está conectado, inclusive o homem. Na natureza tudo funciona como se fosse uma imensidão de engrenagens. Se alguma estraga, outras serão prejudicadas. E nada se opõe entre ciência e religião. Pode-se acreditar em Deus e na evolução. Para o crente, a evolução foi uma ferramenta criada por Deus, para que ocorresse uma fantástica variedade de formas viventes: convivemos com trinta milhões de espécies diferentes! É riqueza demais.
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Matéria trazida de:
http://www.revistaviverbrasil.com.br/revista-viver-brasil-edicoes-anteriores/09/secao_entrevista.php

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